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Uma geladeira inteligente, que consegue identificar que um produto está acabando, poderia, de forma autônoma, comprar este item on-line e pagar virtualmente. No supermercado, tudo o que um cliente colocar no carrinho seria cobrado instantaneamente, sem que fosse necessário passar em um caixa.
Comprar um sorvete no meio de um passeio em Berlim, com preço em euros, poderia ser feito com reais, como aconteceria no Rio. Essas são algumas experiências que prometem virar realidade num futuro próximo com o desenvolvimento do real digital, uma versão virtual da moeda brasileira que o Banco Central desenvolve desde o segundo semestre do ano passado.
O projeto ainda está no início, mas é pauta de reuniões semanais que envolvem o presidente do BC, Roberto Campos Neto, diretores e técnicos. O tema é encarado por eles como mais um passo na agenda de modernização do sistema financeiro, uma das prioridades da instituição nos últimos anos.
Atualmente, os brasileiros já contam com uma série de recursos digitais para facilitar a movimentação de dinheiro, como o Pix. A diferença entre o sistema de transferências instantâneas e a moeda digital é que, neste último caso, será possível movimentar reais que não existem fisicamente.
Para os técnicos do BC, será uma evolução do Pix no sentido de facilitar e ampliar o acesso a transações financeiras mais ágeis e de menor custo.
O esforço do BC faz parte de uma corrida tecnológica que envolve bancos centrais de vários países para desenvolver moedas soberanas digitais (Central Bank Digital Currencies, CBDCs), usando tecnologia parecida com a que originou criptomoedas como o bitcoin. Com a diferença de que serão emitidas pela autoridade monetária dos países.
Como ponto de partida, o BC brasileiro já estabeleceu como diretriz que o real digital será uma extensão da moeda física e que só existirá virtualmente.
O brasileiro poderá escolher lidar com seu dinheiro de forma convencional ou digital. Uma diferença fundamental entre o real tradicional na conta corrente e o digital é a impossibilidade de sacar a moeda virtual. Essa versão não terá um correspondente em papel-moeda. Servirá apenas para transações eletrônicas, sempre rastreadas para impedir fraudes e falsificações.
Busca em mais de 60 países
Como o real digital será emitido pelo próprio BC, a divisa carregará o risco soberano do Brasil. A custódia da moeda ficaria com agentes financeiros, mas ela seria garantida pelo BC.
O real convencional que hoje é depositado por um cliente numa conta corrente é utilizado pelos bancos como base para suas operações, como fornecer crédito para outra pessoa ou empresa. Por isso, o risco relacionado ao saldo de um correntista também está ligado à possibilidade de seu banco quebrar. No caso do real digital, o risco será o do país.
O real digital será baseado em uma tecnologia parecida com o blockchain, sistema que permite rastrear o envio e recebimento de informação pela internet.
É a mesma tecnologia que possibilitou o bitcoin, representante mais conhecido das criptomoedas. Mas o real digital será diferente de uma criptomoeda. Ele será uma divisa com lastro na própria moeda — ou seja, o real — o que o bitcoin não tem.
Outra diferença é que o real digital deverá ter o saldo sempre armazenado em uma instituição financeira, e as transações ocorrerão por intermédio do sistema bancário. Hoje, criptomoedas são armazenadas em carteiras virtuais (wallets) e as operações entre usuários e corretoras não têm supervisão do BC.
Fernando Ulrich, professor da PUC-RS, líder da área de Educação da Liberta Investimentos e um dos maiores especialistas no tema, explica que o bitcoin e demais criptomoedas são regulados no Brasil e na maioria dos países, mas como ativos financeiros, um tipo de investimento, e não como moedas:
— Criptomoedas não são moedas legais, à exceção de El Salvador, que tem o bitcoin como moeda oficial. Poucas pessoas usam bitcoin como um meio de troca.
A implementação de moedas soberanas digitais, as CBDCs, está em estudo por mais de 60 bancos centrais ao redor do mundo, de acordo com uma pesquisa da consultoria PwC, e ganhou corpo após o Facebook anunciar planos de criar sua própria moeda digital.
A China largou na frente e está fazendo testes do yuan digital, assim como a Suécia, que trabalha para viabilizar pagamentos instantâneos com a coroa sueca digital (e-krona). O desenvolvimento e os objetivos são distintos, dependem da necessidade de cada país.
O estudo não trata do caso brasileiro. Eduardo Alves, sócio da PwC Brasil, explica que o país está bem posicionado quando se trata de ideias, mas, na implementação, ainda está um pouco atrás. Ele acredita que o Brasil estará em uma posição melhor na próxima edição da pesquisa com a intensificação do projeto no BC.
— É uma corrida global. Isso é o bitcoin do país. O primeiro que conseguir vai internacionalizar a sua moeda, estará com uma vantagem competitiva — disse Alves.
No Brasil, o BC espera que o real digital sirva principalmente para inovações financeiras. Para alguns especialistas, como Ulrich, o Pix é um “embrião” da moeda digital brasileira. As possibilidades vão depender do desenvolvimento do mercado, imprevisíveis em muitos casos.
O BC, no entanto, já apontou algumas inovações esperadas, como os contratos inteligentes.
Na compra de um imóvel, por exemplo, a transferência do dinheiro seria feita simultaneamente ao registro da transferência da propriedade, acabando com a assimetria entre os dois momentos, que consome tempo, burocracia e eleva riscos.
O mesmo tipo de automatização poderia se dar na relação entre empresas ou o governo e fornecedores, reduzindo desconfianças e dando maior transparência.
— Uma moeda digital em um contrato inteligente resolve tudo isso — diz Rodrigoh Henriques, líder da área de Inovação da Federação Nacional de Associações dos Servidores do BC (Fenasbac).
Alternativa ao câmbio
Outro impacto é o esperado nas transações internacionais. Compras de turistas no exterior ou processos de exportação e importação seriam simplificados se o real digital for interoperável com as moedas digitais de outros países. Alternativa ao câmbio é outra promessa da inovação.
— Além de o usuário final ter outras possibilidades para pagamentos, pensamos também em um sistema mais eficiente por trás, mais rápido e eventualmente até menos custoso — diz Patrícia Thomazelli, sócia do Rennó Penteado Sampaio Advogados.
Antes que essas funções se tornem reais, o BC tem um longo caminho. Os técnicos avaliam que os projetos internos deverão estar concluídos em dois ou três anos, assim como a preparação do mercado brasileiro, mas não há um prazo definido.
É possível inclusive que os estudos cheguem à conclusão de que há solução melhor que a moeda digital, diz o coordenador dos trabalhos no BC, Fábio Araújo:
— Achamos que eventualmente as economias vão convergir para isso, mas pode ser que a economia brasileira e a global ainda não tenham maturidade para uma CBDC. Então continuaríamos com ferramentas mais tradicionais.
Muitas interrogações
O BC considera que ainda há mais perguntas do que respostas. O trabalho agora é encontrar soluções para uma série de dúvidas e possíveis vulnerabilidades que surgem nos cenários discutidos nas reuniões em Brasília.
Trata-se de uma nova forma de lidar com o dinheiro que pode ter impacto em todos os setores da economia, a começar pelo bancário.
Uma das dúvidas, por exemplo, envolve a possibilidade de transações off-line. Como compatibilizar essa intenção com o princípio básico de rastreabilidade de uma moeda digital?
O presidente do BC, Roberto Campos Neto, num evento recente, disse que o desafio é como o de um carro entrando num túnel. É preciso conhecer o percurso após a saída:
— A tecnologia para isso não é trivial.