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Justiça avalia se agricultor é gordo em ações de aposentadoria

Fonte: Folha de S.Paulo
30/05/2022
Direito Previdenciário

Um trecho abordando o IMC (Índice de Massa Corporal) de agricultores que pedem na Justiça a aposentadoria rural do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) vem sendo utilizado repetidas vezes em sentenças de instâncias da Justiça Federal da 5ª Região, que abrange estados do Nordeste.

Em ao menos três casos, o texto indica que, para ser um trabalhador rural, o segurado não poderia estar acima do peso, já que a atividade braçal e o baixo índice de calorias o levariam a ser magro. A reportagem teve acesso a sentenças que traziam o trecho em seus acórdãos, com exatamente as mesmas palavras. Em dois dos casos, o benefício foi negado. Em outro, houve a concessão.

Os casos obtidos são de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba, dois deles com recurso à Turma Recursal. O trecho se repete nas sentenças, chama a atenção e tem provocado polêmica.

"Ainda sobre características físicas, o segurado especial goza de tratamento legal favorecido, mediante a concessão de benefícios previdenciários, no valor de um salário mínimo, independentemente de pagamento de contribuições, porque o exercício de agricultura de subsistência não permite lhe [sic] sobra financeira, isso implica diretamente a restrição à aquisição e, consequentemente, consumo de alimentos, o que reduz a ingestão calórica diária. Isso, aliado ao exercício de extenuante trabalho físico, acarreta baixo índice de massa corporal – IMC (decorrente da razão entre peso e altura) nesse tipo de trabalhadores", diz.

No caso mais recente, de 2022, o juiz relator negou a aposentadoria rural à trabalhadora que recorreu à Turma Recursal do Rio Grande do Norte e, após citar o trecho polêmico, utilizou outras razões para justificar a negativa. "O início de prova material é insubsistente e a prova oral foi desfavorável", afirma na sentença, após tomar o depoimento da segurada.

Em outro processo, de 2020, após citar o trecho sobre o IMC, a juíza relatora da Turma Recursal de Pernambuco concedeu o benefício rural, levando em conta os argumentos do segurado. "Verifica-se que o autor tem um grau de instrução baixíssimo, tendo dificuldade de identificar meses e período de tempo, mas explica de modo concatenado a sua atividade no roçado, explicando com clareza de detalhes e correção os passos de seu trabalho", diz ela.

Em uma decisão recente, tomada na última semana, na cidade de Patos, na Paraíba, a juíza do Juizado Especial Federal negou o direito ao benefício, e citou o trecho sobre o IMC do segurado. Antes de indicarem questões relacionadas ao índice de massa corporal, no entanto, os acórdãos trazem outro trecho, também sobre as características físicas do trabalhador rural.

"É sabido que as características físicas do indivíduo dependem tanto do genótipo quanto das condições ambientais a que está exposto. Nesse ponto, é natural e esperado que pessoas submetidas a trabalhos braçais ao ar-livre [sic], a exemplo da agricultura, apresentem calosidades nas mãos e a pele queimada pelo sol."

ADVOGADOS CRITICAM USO DE CARACTERÍSTICAS FÍSICAS

Para o advogado Rômulo Saraiva, colunista da Folha, o uso das características físicas dos segurados nas sentenças é um "caminho de injustiças". "Não há exigência na legislação para você receber o benefício previdenciário conforme seu visual. No caso dos benefícios rurais, infelizmente, há exacerbação em usar como fundamento de sentença o fenótipo do agricultor, pecuarista, marisqueiro, seringueiro e pescador", diz.

"É um absurdo ter que ficar avaliando se a pele está muito queimada ou branca, se existem rugas de expressão condizentes com quem trabalha no campo, se a mão está muito calejada ou se você está acima do peso ou no IMC ideal. É preciso lembrar que pode ter averbação do tempo rural de épocas remotas, embora sua aparência física atual esteja diferente", afirma Saraiva.

O advogado André Luiz Vasconcelos, especializado em Previdência rural, da página Trio Rural, no Instagram, diz que é comum, em casos de pedidos de aposentadoria rural, os juízes julgarem com base na aparência do segurado. "Há os que fazem de forma disfarçada, mas é comum a gente entrar na audiência e os juízes olharem o segurado dos pés à cabeça, firmando entendimento só pela aparência."

Vasconcelos explica que há diversas atividades rurais que não correspondem ao "imaginário de homem do campo", como no caso de quem trabalha na extração de leite, manufatura de queijo e no transporte de utensílios, entre outras, e não fica exposto ao desgaste.

Para ele, as decisões com base nas características físicas podem prejudicar sobretudo as mulheres, que exercem atividades consideradas mais leves. "Elas ficam com as mais leves, como fazer comida, cuidar da alimentação, guardar as ferramentas na ida e volta do roçado e não têm calos nas mãos."

Outra questão que Vasconcelos aponta é sobre a ideia de pobreza do homem do campo. "Há um raciocínio absurdo, que o agricultor tem que ser pobre a ponto de não ter condições de comprar os alimentos necessários a nutrir o corpo, criando o estereótipo que é o 'miserável do campo'. Essa ideia de pobreza está quebrada há muito tempo. O agricultor tem direito de viver bem, colocar o filho em escola particular e escolher o alimento que vai comer", afirma.

A aposentadoria rural é um benefício do INSS pago aos trabalhadores rurais com, no mínimo, 55 anos de idade, no caso das mulheres, e 60 anos, para os homens. É preciso comprovar carência mínima de ao menos 15 anos na atividade rural.

JUSTIÇA AFIRMA QUE TRECHO É PARTE TEÓRICA

Procurada, a Justiça Federal na Paraíba afirmou que o trecho que trata sobre o IMC de trabalhadores rurais "não é utilizado como argumento para definição da sentença", mas é usado ​como parte teórica "destinada a explicar conceitos abstratos".

Sobre a decisão de Patos, o órgão ressalta que a mesma juíza havia proferido, na manhã de quinta-feira (19), outras três decisões concedendo benefícios rurais aos segurados, todas elas com o mesmo trecho, "o que, de forma alguma, impediu a concessão do benefício aos autores".

Sobre o acórdão do processo do Rio Grande do Norte, a Justiça Federal no estado diz que, "em momento algum", aplicou-se o argumento do IMC para amparar decisão. "É comum que as sentenças proferidas em primeira instância tenham trechos referidos no voto. Esse artifício é necessário para 'ambientar' o caso ora analisado."

Já a Justiça Federal em Pernambuco afirma que a decisão à qual a reportagem teve acesso "confirma a sentença em favor do autor, que garantiu o direito a receber o benefício da aposentadoria rural que havia sido negado pelo INSS" e, para isso, transcreve parte da decisão na qual consta o trecho. "A transcrição é uma técnica processual comum", diz.

O TRF-5 (Tribunal Regional Federal da 5ª Região) informa, em nota, que as decisões tomadas nos processos citados foram de "três magistrados da 5ª Região, integrada por 217 juízes federais, cuja jurisdição é composta por seis estados do país: Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe".

O tribunal afirma ainda que "os juízes atuam sob o princípio da independência funcional da magistratura".

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