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Apesar de ser composto por recursos dos trabalhadores, o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) só pode ser movimentado em hipóteses restritas, entre as quais está a demissão sem justa causa. Em meio à crise econômica causada pela Covid-19, o governo ampliou o acesso ao fundo por meio de medidas provisórias, mas isso não tem sido suficiente. Trabalhadores têm acionado a Justiça com o objetivo de sacar integralmente o saldo do FGTS para conseguirem enfrentar a crise. Para justificar, alegam o estado de calamidade pública.
De acordo com dados divulgados pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), os pedidos de levantamento do FGTS correspondem a 21,45% do total de processos relacionados à Covid-19 até maio de 2020. Trata-se do tipo de pedido mais frequente na Justiça do Trabalho durante a pandemia.
Há decisões nos mais diversos sentidos. Isso porque cabe a cada juiz decidir se a Covid-19 pode ou não ser considerada uma hipótese de calamidade pública para fins de levantamento do FGTS. Os pedidos se baseiam em três normas diferentes que, a partir da interpretação, podem, ou não, permitir os saques.
A Lei 8.036/1990 rege o FGTS e dispõe sobre as condições para o saque dos recursos, incluindo entre as hipóteses a decretação do estado de calamidade pública. Em 2004, o Decreto 5.113 regulamentou essa hipótese, trazendo uma lista de situações em que ficaria possibilitado o saque, como: vendavais, tornados, enchentes e inundações. Já o Decreto Legislativo 6/2020 reconheceu o estado de calamidade pública ocasionado pela pandemia da Covid-19. Assim, trabalhadores alegam que a atual situação, reconhecida pelo poder público, está no rol das hipóteses que possibilitariam a movimentação dos recursos.
Em 7 de abril, o presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 946/2020 que autorizou o saque de até R$ 1.045 do FGTS. Para além do limite de valor, foi criado ainda um calendário para esses saques, com base no mês de nascimento dos trabalhadores. Além disso, no dia 4 de agosto, a MP perdeu a validade porque não foi votada pelo Congresso Nacional – a pedido do próprio governo. Deputados devem propor um projeto de lei para regulamentar o acesso ao fundo. Até lá, trabalhadores devem continuar acionado a Justiça a fim de conseguir movimentar um valor maior e com maior urgência.
A advogada Verônica Quihillaborda Amaral, do Mauro Menezes Advogados, defende que o rol previsto no Decreto 5.113/2004, ao abordar as hipóteses de calamidade pública, é exemplificativo e não taxativo. “Não é possível ao legislador antecipar todos os desastres que podem nos acometer coletivamente, e não seria razoável imaginar que, em 2004, o cenário pandêmico já estivesse expressamente consignado como hipótese de saque de valores depositados no FGTS”, diz. Por isso, em sua visão, a Covid-19 deve ser considerada pela Justiça como motivo para autorizar o acesso do trabalhador ao fundo.
Já o advogado Flavio Aldred Ramaccioti, sócio da área trabalhista de Chediak Advogados, alerta que esse tipo de ação não deve ser proposta contra os empregadores. “Há decisões em vários sentidos, liberando ou não. Mas a meu ver o processo não deve ser contra a empresa, e sim contra a Caixa, que é administradora dos recursos”, diz.
Decisões divergentes
A questão vem sendo levada tanto à Justiça do Trabalho quanto à Justiça Federal. Alguns juízes do Trabalho reconhecem que há jurisprudência do TST no sentido da competência desta seara para julgar o tema. Mas há magistrados que entendem que, por não se tratar de conflito entre empregador e empregado, a competência é afastada. Já a Justiça Federal, quando acionada, tem atestado a competência de sua jurisdição e costuma julgar essas demandas.
Para Amaral, a competência deve ser da Justiça do Trabalho. “O pedido deve ser articulado perante a Justiça do Trabalho, a despeito das recentes discussões sobre os limites de sua competência. Os valores que se busca sacar são, inegavelmente, fruto de relação de trabalho atual ou já extinta, o que atrai a aplicação do artigo 114, I, da Constituição”, opina.
Seja na Justiça do Trabalho, seja na Justiça Federal, há decisões em diversos sentidos, inclusive já na segunda instância. Um exemplo é um acórdão de 4 de agosto da 12ª Turma Recursal do Juizado Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), que negou o pedido de um trabalhador para sacar a totalidade dos recursos depositados em seu FGTS. Na primeira instância, o pedido também havia sido negado.
Em seu voto, a desembargadora relatora destaca que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já entendeu que o rol de hipóteses de calamidade pública previstos na Lei 8036/1990 é exemplificativo e não taxativo. Entretanto, considerou que como “a pandemia da Covid-19 atinge a todos os brasileiros, a interpretação proposta pelo autor acabaria por autorizar o saque da integralidade dos valores depositados nas contas vinculadas, com efeitos incalculáveis no que toca a uma das finalidades primordiais do fundo”, que é o fomento a investimentos estratégicos e financiamento de programas sociais como o Minha Casa Minha Vida. “Exige-se temperança nessas situações graves”, disse a relatora.
Em muitos outros casos, há um provimento parcial do pleito dos trabalhadores, limitando o saque a R$ 1.045, conforme a medida provisória do governo Bolsonaro, mas autorizando o saque antecipado, sem que o trabalhador tenha que se sujeitar ao calendário da Caixa Econômica. Foi neste sentido decisão recente da 5ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15), de Campinas. Os desembargadores entenderam que a Covid-19 está contemplada pela hipótese de ‘calamidade pública’ para fins de saque do FGTS, mas ressaltaram que a própria lei que prevê esta movimentação também prevê que norma regulamentadora vai limitar os valores. Na visão dos magistrados, a MP 946/2020 é a norma que regulamenta os saques. Este entendimento tem sido muito comum em diversos tribunais trabalhistas.
Já no dia 17 de agosto, a juíza Alessandra Duarte Antunes Freitas, da 1ª Vara do Trabalho de Uberlândia, deferiu o pedido de uma trabalhadora e autorizou que ela sacasse, imediatamente, R$ 5.175 de seu FGTS. Em sua visão, não é razoável “que o trabalhador possa sacar o FGTS para aplicação em fundos mútuos de privatização, e não possa sacar os depósitos do FGTS no momento em que se vê, de uma hora para outra, totalmente privado de suas fontes de renda e meios de sustento próprio e de sua família em razão da pandemia”.
Há quem entenda, inclusive, ser possível o saque integral do FGTS, desde que preenchidos certos requisitos. Ao julgar um recurso de uma trabalhadora que pedia o saque integral do FGTS – no total de R$ 29.372,97 –, a 6ª Câmara do TRT15 autorizou a retirada de R$ 6.220, valor de referência do Decreto 5.113/2004 nos casos de calamidade pública.
O relator, Guilherme Guimarães Feliciano, contudo, ressaltou que vislumbra a possibilidade da liberação integral dos valores do FGTS em casos excepcionais — mas essa não era a hipótese daquele processo. “Em caso de necessidade excepcional provadas nos autos — por exemplo, de doença grave de um parente próximo, de iminência da execução de uma hipoteca ou de um despejo –, entendo que seja possível o saque integral do FGTS a qualquer tempo”, afirma Feliciano.